segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Van Eyck


Outrora (na Idade Média ou na Renascença) os pintores não assinavam sua obra enquanto não estivessem suficientemente confiantes para conceder o mérito de seu selo ou rubrica de seu atelier. Mas a evolução da situação do pintor no interior da economia ocidental, não trabalhando mais sob o comando de qualquer igreja ou príncipe, mas se metendo a produzir os objetos para vender por intermédio dos mercadores, objetos para os quais ele faz uma marca de fábrica, uma garantia de autenticidade, o que faz a assinatura se tornar uma prática cada vez mais comum e cada vez mais importante. Entre numerosos artistas ocidentais, todo o trabalho sobre a escrita, toda a caligrafia se concentra nisso.

A assinatura-marca, quer dizer que ela não é destinada a facilitar a venda de um objeto sobre o qual foi colocada, mas deve promover um atelier e atrair para ele as encomendas de grandes trabalhos, é daqui em diante um exemplo de saber fazer que propõe a obra como amostra ou catálogo (é assim que nós podemos pintar rostos, flores, suplícios, paisagens e inscrições) ela será então bem elaborada, muito bem desenhada.
Tomemos o famoso texto no Casamento de Arnolfini abaixo do espelho no interior do qual percebemos sem dúvida o artista, mas sem que possamos precisar qual das três figuras minúsculas entre as costas dos dois esposos: “Johannes de Eyck fuit hic” (Jean Van Eyck esteve aqui – e não, como temos a tendência a ler, de acordo com a fórmula das assinaturas posteriores, mas com descaso pelo detalhe das letras “fecit hoc”: quem fez).

Jean Van Eyck assistiu o momento do matrimônio, a pronúncia das palavras sacramentais dos esponsais. A obra é resultado de sua presença. Não se trata de uma sessão de poses necessária ao artesão pintor que faz retratos depois da cerimônia propriamente dita para a qual tal artesão não poderia ser convidado. O que a obra comemora é justamente o feito de que o pintor foi convidado, ele próprio é uma testemunha, é uma promoção que está representada por ele nesse acontecimento; ela foi pintada como um agradecimento.

Mas também que insígnia desse presente real! Sendo capaz de captar na armadilha do espelho de minhas cores suas cerimônias mais íntimas, podem considerar que tive o mérito de assistir; a excelência de minha pintura é tal que me coloca no mesmo nível de vocês. Outro pintor poderia desenhar seus rostos, compor todos esses objetos, mas que outro pintor esteve lá?

A extrema elaboração desse gótico mostra bem que não se trata de uma marca de fábrica, nem mesmo de uma simples rubrica; além da comemoração de um ato essencial (o casamento, o convite, a presença), a assinatura é ela mesma um ato essencial: por meio dela Jean Van Eyck pode assegurar publicamente o título da burguesia que de certa maneira teve o reconhecimento a partir desse dia.

(excerto de As palavras na pintura, de Michel Butor. Tradução de Amir Brito Cadôr)

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